Fiz essa análise em 2011 para a Nostalzine Club e decidi tirá-la da gaveta. Ou seja, trabalhei melhor o texto, adicionei novos conceitos adquiridos, novas ideologias defendidas e citações a obras mais recentes. Ah, sim, aproveitei pra testar um novo layout estético.
Fragile Dreams não é um daqueles jogos onde explosões ocorrem de cinco em cinco minutos, não tem sangue jorrando na tela até sair da televisão ou qualquer estímulo equiparável a uma injeção de adrenalina diretamente na corrente sanguínea. Se ainda espera um jogo como um Final Fantasy, que pode até carregar uma carga emocional densa, mas ao fim ainda nos deparamos com uma sensação de dever cumprido num universo onde praticamente tudo se resolve, pode tirar o cavalinho da chuva. Fragile Dreams extrai a nata do drama existencialista humano em seu enredo, o que o torna uma das experiências mais incomuns e ousadas do Nintendo Wii.
Apesar de lembrar vagamente um Survival Horror com uma pitada daquele terror paranormal japonês característico, o jogo trabalha um enfoque no drama e na melancolia dos sentimentos humanos, bem como uma filosofia existencialista num tipo de RPG Hack’n’Slash. Pode soar estranho, mas é necessário lembrar que esse é um estilo de gameplay que não está necessariamente atrelado à gêneros mais aventurescos. Não que Fragile Dreams não seja, de certa forma, uma aventura, contudo.
O jogo conta a história de um garoto de 15 anos chamado Seto, um dos últimos seres vivos num mundo pós-apocalíptico totalmente destruído. Passou a sua vida inteira ao lado de um idoso (o qual apelidou de avô) dentro de um observatório, até que esse senhor morre e deixa um bilhete que orientava Seto a seguir em direção a uma Torre Vermelha (que nós, do mundo comum, conhecemos como a Torre de Tóquio). Em seu caminho, encontra uma menina de cabelo prateado, cantando à luz da lua, quando, pela primeira vez, Seto compreende que são suas decisões que devem definir o rumo de sua vida e, por isso, decide que precisa conhecer aquela garota, que havia fugido ao notar sua presença.
Em sua jornada, Seto conhece várias outras personagens interessantes que, de alguma forma, conseguiram remanescer naquele mundo arruinado. Crow, por exemplo, é um garoto amnésico que Seto conhece num parque de diversões e, apesar de ter demonstrado certa antipatia ao se apresentar, torna-se o primeiro amigo que Seto faria em sua viagem. O objetivo de Crow é encontrar seu lugar de origem para que, talvez, descubra mais sobre seu passado. A companheira de viagem de Seto é uma espécie de computador pessoal falante, que serve por um tempo de guia para o jogador. A graça do enredo está no fato de trabalhar a história de absolutamente todos os NPC’s apresentados, o que faz com que o jogador crie uma espécie de relacionamento e se apegue a todos eles. O jogo quer imergi-lo. Quer provocar uma catarse emocional.
Fragile Dreams explora o drama humano e utiliza de questões filosóficas e o efeito psicológico de temáticas como morte, solidão, felicidade e amizade, bem como os diferentes modos em que essas questões atingem as pessoas. Até mesmo os vários itens colecionáveis contam histórias a respeito dessas temáticas. Fragile Dreams trabalha emocionantemente a preservação da memória. Isto é, a memória de cada um é formada por um mosaico de diferentes e únicas relações interpessoais que acabam se perdendo com o passar da história. Os relatos impregnados nos objetos colecionáveis ilustram as memórias mais importantes e os sentimentos fortes de seus antigos portadores.
O ambiente naturalmente sombrio foi trabalhado de forma a transmitir, em conjunto do enredo, a melancolia da solidão pós-apocalíptica. Entre os diversos cenários estão as ruínas de um parque de diversões, uma estação de metrô abandonada, esgotos e o que sobrou de um antigo hotel. As paredes ao longo do jogo são em sua maioria cobertas de pichações com mensagens de ajuda ou frases cujo intuito é deixar um registro de que seu autor existiu nesse mundo algum dia. Os ambientes são sempre muito escuros quando internos, iluminados por lâmpadas fracas e falhas ou frestas por onde penetram timidamente a luz do sol ou do luar. Ambientes externos contam com sombras projetadas que diminuem a iluminação natural ou que deixa clara a deterioração das estruturas humanas em um mundo sem os mesmos; um pôr do sol que cria um contraste entre o horizonte e o cenário, criando um efeito de silhueta; ou ainda com a luz do luar que ilumina timidamente os cenários, colaborando com a sensação de angústia e insegurança.
Por utilizar um visual cartunesco, afirmo que Fragile Dreams é talvez um dos jogos mais bonitos do Wii – uma vez que, por não se apegar à realidade, não têm compromisso nenhum com a verossimilhança. Os personagens são modelados num estilo de desenho japonês e os modelos são todos muito bem caprichados, de modo com que cada um tenha sua personalidade transmitida já no próprio aspecto visual. As cutscenes são um show à parte e botam qualquer Last of Movies ou Heavy Movies no chinelo.
Sobre o gameplay, os combates geralmente são contra fantasmas e espíritos de filmes de terror japoneses. Isto quer dizer que os inimigos tomam forma, em sua maioria, de mãos, águas-vivas ou pernas espectrais. Entre as armas que Seto pode utilizar, estão desde Gravetos até vassouras ou canos enferrujados que podem quebrar com o tempo e que possuem um poder destrutivo mínimo. É interessante encontrar um universo pós-apocalíptico onde a ameaça é psicológica e, por isso, aquelas armas de fogo dos apocalipses zumbis, mutantes ou quaisquer que sejam as ameaças não servem de nada (aliás, tal armamento nem existe no jogo).
Até aqui eu demonstrei um comportamento incrivelmente incomum para quem me conhece e admito isso. Apesar de utilizar palavras como “sentimento” e “emoção”, eu dificilmente me deixo levar por tais ideias. Apesar de lamber as bolas da experiência cinemática que o jogo carrega, eu considero tal qualidade um câncer para a indústria como um todo. A graça, porém, é que Fragile Dreams, de alguma maneira inexplicável, conseguiu me cativar de maneira incomum. De fato, analisando sem qualquer máscara de apego, é um jogo estupidamente tosco de um emo perseguindo uma loirinha por corredores gigantes intercalados por cutscenes compridas e muitas vezes piegas. Até concordo com esse ponto de vista. Então, o que tem de tão especial em Fragile Dreams?
Não consigo explicar com exatidão, mas acredito que seja um dos raríssimos casos onde tais recursos foram utilizados de forma realmente procedimental dentro da experiência sem descartar os valores que o tornam um jogo, em vez de um filme com algumas partes jogáveis no meio. Ou melhor, os valores que definem o que é um videogame foram, de fato, perdidos. O que se tem aqui é uma experiência de narrativa hipertextual bem sucedida. Um ciberdrama perfeito que não é um jogo de videogame, mas também não é um filme gigante com QTE’s para propiciar uma falsa sensação de interação. Fragile Dreams utiliza o ciberespaço de forma competente. Não é uma forma falha de forçar algum tipo de imersão, como é aquele mundo aberto com absolutamente nada de Shadow of the Colossus (aliás, o mundo morto e pós-apocalíptico do Fragile Dreams consegue ter mais conteúdo do que o jogo dos colossos lá), cuja utilidade é nenhuma. Ou melhor, serve apenas para inflacionar o tempo de jogo.
Creio que Fragile Dreams é o elo perdido que liga um jogo de verdade de pura essência e os filmes com determinados momentos jogáveis. É uma espécie de transcendência que teve de abdicar valores de ambos os lados para se tornar o que é.
Fragile Dreams: não é um jogo para qualquer um. É necessário ter paciência para adentrar numa viagem que em diversos momentos deixa o jogador em estado de catarse diante de tão melancólico e deprimente enredo. Não sou muito fã desse movimento que encara o videogame como uma manifestação artística. Fragile Dreams não é arte. É entretenimento. Mas quem disse que o entretenimento não pode transmitir conteúdo factual?
Fala-se muito de “Oscar dos Videogames”. Eu sugiro então, compactuando (com contragosto) com essa mania horrível de estabelecer um paralelo com indústria cinematográfica, a criação de um Palm d’Or para a indústria ludológica. E Fragile Dreams: Farewell Ruins of the Moon, com certeza, é o melhor exemplo de um jogo digno de tal honraria.
Informações
- Produção:Namco Bandai
- Estúdio: Tri-Crescendo
- Ano: 2009
- Gênero: RPG
- Plataformas: Nintendo Wii
Notas:
[1] Link relacionado: [E quem precisa de alta definição?]