Anacronismo, Datação e Vanguardismo: animes e mangás em suas épocas

Escrevi em setembro de 2019, ficou no limbo por preguiça de fazer a imagem de capa. Além disso, tem textos e pessoas que, com certeza, discorrem sobre o assunto muito mais profundidade e de uma maneira melhor do que eu. Só escrevi isso durante o ócio e pelo didatismo rápido que a internet exige, já que a maioria dessas outras abordagens que citei  são, em sua maioria, textões que podem incitar a preguiça no público comum — o que na verdade é o correto a se fazer, se tratando, afinal, de um assunto tão amplo e complexo.

Quando a gente vai analisar uma obra, uma coisa precisa estar clara: ela é um produto de sua época e, portanto, apesar de transmitir uma série de pensamentos que atualmente possam ser retrógrados, você não pode cobrá-la dentro dos pretextos vigentes na produção cultural moderna. Dessa forma, existe algo chamado anacronismo, que, segundo a definição imediata do Google, trata-se de um uma atribuição errônea de uma ideia ou valor a personagens, épocas ou contextos aos quais eles não pertencem.

Dessa forma, vamos ao nosso objeto de análise que me motivou a estar escrevendo a minha dose de asneira de hoje:

Pois bem. Dragon Ball é uma obra de 1985 e, Dr. Slump (que também é conhecido por seus problemas nesse campo) é ainda mais antigo, de 1980. Naruto, por sua vez, é de 1999, praticamente quinze anos depois de um novo contexto de globalização da cultura pela qual o mundo todo passou depois da queda do Muro de Berlim e declínio da União Soviética. Dessa forma, mangás dos anos oitenta ainda são incrivelmente estereotipados e exagerados.

JoJo’s Bizarre Adventure e Hokuto no Ken são exemplos claros disso. São produtos de uma época em que o cara bombadão era o sinônimo de virilidade como propagado por filmes como os protagonizados pelo Stallone e o Schwarzenegger. Além disso, é interessante pensar na percepção japonesa em relação a produtos do ocidente. Dessa forma, a gente para um pouco e analisa a própria presença afrodescendente na esfera popular.

Sign Wa V!, de 1968. É interessante como os mangás Shoujo conseguem ser muito mais a frente de seu tempo em relação aos temas que aborda. 

Até os anos 80, por exemplo, a MTV não exibia clipes de artistas negros antes de Little Red Corvette, do Prince, e de Billie Jean, do Michael Jackson. A principal representação exportada ainda era a impressão do Jim Crow, uma caricatura do negro sulista marcada pelos lábios grossos — algo que, inclusive, temos um similar concebido por Monteiro Lobato: Jeca Tatu, que faz o mesmo com o modo do caipira brasileiro.

Agora, pegue o contexto do Akira Toriyama, um japonês da área rural e completamente não-acostumado a ver qualquer gaijin que seja, independentemente da cor da pele, mas ainda bombardeado por uma série de outras interpretações que hoje são claramente racistas do ponto de vista social.  Não é surpresa, então, que você acabe vendo esse tipo de representação esdrúxula de povos tribais de boca larga. Isso é notável tanto em Dr. Slump quanto em Dragon Ball.

Bouken Dankichi: Hyouryuu no Maki, de 1934

Ou seja: o bruto da percepção do Toriyama ou de qualquer mangaká mais antigo vem diretamente do conteúdo importado que muito provavelmente veio das visões estereotipadas produzidas pelo material norte-americano. Walt Disney, por exemplo, é um dos principais exemplos disso com aquele Song of the South, que inclusive rendeu um aviso prévio em sua inserção no Disney+. O próprio Jim Crow também foi representado por um corvo em Dumbo (que também recebeu aviso). Isso sem falar da diarreia que é O Nascimento de uma Nação, aquele infame filme patrocinado pela KKK que, para o bem ou para o mal, serviu para pavimentar a formação de uma indústria cinematográfica no formato como conhecemos hoje.

Aqui a gente reitera: as representações do Toriyama são um produto de seu tempo. Você pode entender que, para os padrões de hoje, pode ser um trabalho racista — e, para definir isso, a gente tem um segundo termo específico: datado —, mas é imoral culpar seus defeitos dentro dos padrões atuais, caso contrário, não sobra absolutamente nada que for antigo. Fazer o que Dragon Ball e Dr. Slump fizeram nos anos oitenta, em sua época, não é errado. Ou melhor: é errado sim, de fato, mas não é algo passível de um julgamento póstumo. Hoje, o valor desse tipo de situação está em servir mais como uma espécie de modelo para atestar uma eventual evolução da percepção sobre os afrodescendentes. Você não nega sua história, você a mantém para servir de exemplo a respeito de como não proceder atualmente.

Dr Slump, capítulo 2. 1980 (acima) e reedição em 1995 (abaixo). Quinze anos depois, a representação estereotípica foi mudada (transformada em aliens) de acordo com um novo contexto de globalização. Houve intenção, ao menos.

Sabe o que seria errado? Se Naruto fizesse exatamente o mesmo em plenos anos 2000, quinze anos depois e com outros contextos sociopolíticos em voga. É errado comparar as duas ou colocar uma como superior a outra — principalmente porque aí eu pergunto: como andam as personagens femininas na obra do Kishimoto? Afinal, não tem uma personagem em Naruto que seja melhor concebida do que a Número 18 — e olha que o Toriyama também é péssimo para escrever personagens mulheres (a Videl que o diga).

Em Naruto, no máximo, você vai ver uma evolução respeitosa com a Sakura logo no primeiro arco do Shitpooden (quando ela enfrentou o Sasori). Entretanto, esse desenvolvimento se deu igual àqueles episódios em que dão destaque à ranger mulher nos Power Rangers (geralmente a rosa), quando zoam a mocinha por ser fracote e frágil em relação aos outros — aí ela salva todo mundo, que acaba admitindo “oh, você é forte também”, para logo depois, no restante da série, voltar a ser uma inútil como antes.

Sakura contra Sasori é um negócio incrível para o desenvolvimento da personagem. Pena que fica por aí e ela logo vai para escanteio até o fim da série. Daí as piadas em relação à inutilidade dela.

A Tsunade só tem posição de destaque, mas em nenhum momento mostrou com clareza e unanimidade que provasse que ela é tão do caralho quanto a colocam — principalmente porque ela nem era a primeira opção para o cargo e ficou à sombra do Jiraiya. A Konan tinha potencial, só que foi dessas que até mostra um poder fodido, mas que nunca dá em nada por conta de um vilão quebrado, de tão poderoso. Isso sem falar da Ino, que tem 11 anos e já era Sex Appeal. As melhores acabam sendo a Temari e a TenTen, mas sofrem com o pouco tempo de tela e ainda são zoadas pelo próprio fandom, que não ajuda e logo as desqualifica como sendo lésbicas.

Isso porque a gente só está falando do Narutão puro e simples. Não vamos jogar a merda no ventilador e chutar o cachorro morto que é a tempestade de bosta que é Boruto, que se trata de uma série ainda mais nova e que deveria trazer ideias e ideais ainda mais modernos em sua concepção. Em compensação, o que temos é a roupa tosca da Sarada — o meu chute é que foi feito de propósito para as pessoas se esquecerem do quão ruim é a história do negócio, desviando o foco. Naruto a gente até dá a colher de chá. Boruto veio vinte anos depois e, novamente, em um contexto completamente diferente.

Na real, a Salada tem provavelmente um dos designs de personagem mais estúpidos já feitos na esfera popular.

Ao mesmo tempo, a gente não vai necessariamente desqualificar tanto assim (referindo-me apenas a Naruto e só, uma vez que Boruto a gente dá descarga mesmo, é isso o que se faz com merda) porque, tendo demografia Shounen, é uma prática padrão da indústria colocar um protagonista mais identificável com o seu público-alvo, que é o moleque de onze ou doze anos. Assim, é importante ter a consciência dos erros que esse tipo de obra acaba cometendo, mas desqualificá-la por conta deles de uma forma tão imediatista é uma atitude extremamente superficial. Lembrando sempre que uma obra é produto de seu contexto.

Dessa forma, acusar só o Naruto de consolidar os padrões machistas da sociedade para um público ainda em formação intelectual também é um problema, visto que a errada é toda a cultura da indústria de mangá em si. Acontece algo similar no cinema, quando acusam o baixo número de indicados negros nas categorias do Oscar, sendo que, na verdade, a culpa é da própria indústria que não os coloca em papéis de destaque para que possam pleitear tais indicações.

Não é algo exatamente dentro do assunto, mas dá para traçar um parentesco distante: quantos animes de Mecha você vê por aí protagonizados por mulheres? De cabeça, lembro de Gunbuster, basicamente.

É claro que sempre vão surgir argumentos como “olha, em mil novecentos e bolinha já teve um mangá lá em que não sei quem era negro e mulher e era foda”. Certo, aí é quando vamos aprender a terceira palavra do dia: Vanguarda, atribuída a qualquer obra que esteja absolutamente a frente de seu tempo e serviu para, inclusive, abrir precedentes para que a história se repita. A Parte 6 de JoJo, com uma das primeiras (senão primeira) protagonistas femininas em um mangá shounen, é um bom estudo de caso nesse aspecto, mas não é um exemplo que represente um mercado mais amplo, que ainda carece desse tipo de diversidade.

P.S. 1: Se a gente for ainda mais para trás da obra do Toriyama, com certeza encontraremos tanto material anacronicamente ofensivo, como o curta Bouken Dankichi: Hyouryuu no Maki, de 1943, quanto material vanguardista, como Sign Wa V! (The V Sign!, em inglês), de 1968, que problematizava sobre como uma das jogadoras era negra — brasileira, inclusive — e tinha receio a respeito da percepção que o resto das pessoas teriam em relação à cor de sua pele. Aliás, quase sempre são os Shoujos que costumam trazer esse tipo de discussão social mais densa para a indústria de anime e mangá. Aproveitando, as imagens dessas duas obras foram utilizadas para ilustrar um pouco o meu post (a capa é de Sign wa V!, inclusive). 

P.S. 2: Trabalhando algumas referências, o Genkidama tem um artigo muito bom em que aborda a questão do machismo presente em Hokuto no Ken e tem como argumento base o mesmo daqui: o distanciamento contextual da parada. A gente não ignora o problema presente, mas não condena a obra por isso.  O mais interessante é que, como de costume na internet, a galera dos comentários NÃO LEU o texto, já que na verdade ela está defendendo o Hokutão. Em tempo, outros materiais que li rapidamente para compor o meu foram esse artigo do JapanSociology, um blog organizado por um professor de Relações Internacionais da Universidade Ritsumeikan (em Kyoto), e esse outro, chamado Ethnic and Racial Stereotypes in Manga, de um blog hospedado pelo MIT — e publicado em 2000, atestando que esse ponto de vista não é necessariamente algo novo.

P.S. 3: Um mangá que tem uma puta representação foda nesse critério é Bleach, indo desde o Tousen — que apesar de vilão, ainda ganha um destaque considerável e muito maior do que é normal para a própria série — passando pela Yoruichi e chegando até mesmo no Sado Yasutora, que não é negro de fato, mas nos faz lembrar que os latinos (nós, basicamente) também é um povo pouco representado na indústria cultural japonesa, principalmente porque quando acontece, geralmente sai algo extremamente estereotipado — o que não é o caso aqui. Em contrapartida, assim como Naruto, a representação feminina em Bleach é igualmente péssima. 

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Um comentário sobre “Anacronismo, Datação e Vanguardismo: animes e mangás em suas épocas

  1. Eduardo

    Muito bom o texto.

    Acho que é legal pontuar que Dragon Ball é uma obra tão extensa que ela aprende com o passar do tempo.
    As representações racistas são mudadas em novos personagens, Oob (reencarnação do Majin Boo) é um menino negro e sem estereótipos raciais no desenho.

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