Análise: Eizouken ni wa Te wo Dasu Na!

Só para constar, eu comentei bastante sobre a série aí, nem me preocupei com a parada dos spoilers. Se for comentar, LEIA o texto primeiro antes de falar qualquer asneira que o texto já tenha respondido por si só.

Bakuman é a história de dois paspalhos que, durante o ensino médio, decidem se aventurar em uma empreitada profissional para se tornarem mangakás da Shounen Jump, revista em que a obra em questão chegou a ser publicada. Tendo tal sinopse em vista, é muito fácil traçar um paralelo imediato com Eizouken ni wa Te wo Dasu Na! (Keep You Hands off Eizouken!, em inglês), que pode ser traduzido — com liberdade poética minha — para “Tira a pata do meu Eizouken!” — e que aqui chamaremos apenas de Eizouken porque é um nome comprido demais para ficar repetindo.

Eizouken é um termo em japonês para “Estudos audiovisuais” e é o centro principal da obra aqui sendo analisada. Na série, acompanhamos a trajetória de duas garotas (Asakusa e Mizusaki) fascinadas com a ideia de animação como mídia própria e uma terceira (Kanamori) que só está de olho na grana que tal formato pode garantir.

Desde o começo, a estética desse anime brinca com o campo do surreal. O próprio colégio onde as três mocinhas se conhecem está bem longe de ter a aparência de uma escola comum, lembrando aqui um pouco aquela zona que é a ambientação de Kill la Kill, além de beber um pouco do estilo arquitetônico do Ghibli — aliás, referências a “atmosfera e senso estético das obras do estúdio Ghibli” já são um negócio ultrassaturado, na minha opinião.

Pois bem, as três garotas acabam se conhecendo por obra do destino e, (quase) compartilhando dos mesmos gostos por animação, decidem se unir e montar um clube de estudos audiovisuais — que nada mais é do que uma justificativa para que consigam algum amparo no objetivo final delas, que é conceber animações. As três logo ganham acesso a um velho pavilhão que precisa ser reformado. É durante essa revitalização que Eizouken começa a mostrar a que veio.

Nos vários momentos em que as garotas precisam realizar tarefas sacais do cotidiano, elas logo se veem em situações absolutamente abstratas e ficcionais, visão que utilizam como uma forma de se concentrarem em determinado trabalho maçante. Por exemplo, quando elas precisaram consertar o telhado do galpão-estúdio delas, as mocinhas imaginam que estão arrumando o teto de uma espaçonave. Elas gostam tanto de anime e do conceito de animação em si em que imergem numa espécie de não-realidade que mistura anime e a vida real.

A verdadeira sacada dessa série é que essa ambientação em si muda completamente e nós, espectadores, não vemos as integrantes do clube de estudos audiovisuais consertando um eventual telhado, e sim três astronautas arrumando a estação espacial. Esse tipo de mudança acontece não apenas quando o trio está perdido em seus devaneios, mas também quando elas discutem a concepção das animações que estão prestes a produzir — é como se elas materializassem as próprias ideias em uma espécie de ambiente tridimensional em RV ou um Holodeck — e os elementos em questão vão aparecendo. Mais notavelmente: é um sentimento que, ao finalizar e exibir seus projetos, as garotas conseguiram projetar essa capacidade para os próprios espectadores.

Então, a premissa de Eizouken é interessante e os primeiros episódios empolgam bastante. O problema é que ele logo cai no ostracismo. Por mais que ver as garotas dando duro e conhecer a história delas continue sendo legal, há uma espécie de vácuo de uma discórdia que ajudaria a trama andar. Pode-se argumentar que o conflito está nas dificuldades que elas encontram para lidar com os clientes que encomendam os animes e com o conselho estudantil que não é muito chegado nesse papo de um clube audiovisual, mas em nenhum momento tais forças foram realmente incômodas a ponto de complicar a vida das protagonistas.

Levando isso em conta, talvez um filme ou mesmo OVA de Eizouken teria sido muito mais impactante e instigante por chegar de uma vez só e não encontrar esse problema de ritmo semanal para tentar se manter. Isso provavelmente resolveria a maior parte desse revés dos conflitos, que pareceram simplórios demais durante a série corrida porque se resolviam em uma velocidade não compatível com sua longa extensão e formato episódico. Considerando o pouco espaço de manobra que enxutas produções de uma hora e meia ou até duas horas exigem, as resoluções corriqueiras das problemáticas seriam mais fáceis de se engolir.

Tendo isso em vista, muito do mérito de Keep Your Hands o Eizouken é no conjunto visual. Vez ou outra, é comum me deparar com uma discussão — já tradicional nos meandros dos entusiastas por animação e especialmente cotidiano entre os amantes da animação japonesa — que coloca em pauta uma dicotomia entre a qualidade da história e a qualidade da animação. Apesar de haver um debate recorrente acerca desse dilema, é quase unânime a constatação de que o enredo em si é mais importante do que o tal aspecto visual a nível técnico.

De uma maneira puramente superficial, eu tendo a concordar. No Oscar, por exemplo, eu sempre levantei a bola de que o cinema é sobre contar histórias e que o prêmio que costumeiramente está atrelado ao de melhor filme é justamente o de melhor roteiro. Observa-se que, dos últimos dez anos, apenas dois longas vencedores da categoria principal não levaram o de screenplay: O Artista (2011) e A Forma da Água (2017) — nota-se que ainda assim chegaram a ser indicados para o critério em questão.

Em contrapartida, na própria animação japonesa eu já levantei esse ponto e expressei descontentamento com séries que correspondem ao chavão do “estilo sobre substância”. O nome mais fresco que posso trazer no inuito de provar meu ponto é Promare, embora aplique-se similarmente em jogos como Abzû e The Legend of Zelda: Twilight Princess. Eizouken se aplica nesse aspecto, considerando os supracitados problemas de ritmo e de história?

Enquanto a esfera dos otacos sujos está debatendo essa oposição entre animação e narrativa de uma maneira completamente polarizada, eu vou fazer o advogado do diabo e chamar a atenção para essa característica técnica em si. Observando situação de um uma abordagem condoreira (e de cabeça fria), essa dubiedade, a meu ver, não faz o mínimo de sentido não porque a animação é tão importante quanto a história, mas pelo fato de animação, dentro de suas qualidades técnicas, é também a própria história.

Marshall McLuhan, estudioso da comunicação do século XX, trabalha uma ideia que constantemente é resumida à expressão “o meio é a mensagem”, visto que mídias diferentes transmitem as mensagens cada uma à sua maneira e, dessa forma, uma informação transmitida pela televisão será recebida, percebida e assimilada de um jeito diferente de uma notícia ouvida pelo rádio por exigir diferentes percepções do ser humano a nível sensorial. Ainda, por se tratarem de mídias diferentes, a própria mensagem será diferente e condicionada por esse próprio canal de difusão.

Costuma-se afirmar que a primeira narrativa dos games é Donkey Kong, mas isso se aplica ao fato de tal game ser a primeira instância em que uma história cujos atos referentes à introdução, desenvolvimento e conclusão se desenrolam na tela. Ao retomarmos, por exemplo, até Spacewar!, um projeto universitário feito por estudantes do MIT, você logo observa uma série de elementos figurativos que ajudam a compor o seu worldbuilding, como quando eles chamam o grande ponto branco no centro da tela de “estrela”.

Trabalhando com jogos mais recentes, ao encontrarmos ruínas sem quaisquer indícios a respeito de sua origem em The Legend of Zelda: Breath of the Wild, o título em questão também está nos contando uma história. Sim, ela é aberta para maiores interpretações (como toda história é) se comparada a um enredo em um formato direto, mas ainda está lá com o intuito de difundir alguma mensagem. Esse tipo de narrativa abstrata se faz presente até mesmo em Tetris no instante em que as distribuidoras ocidentais trouxeram toda uma identidade visual baseada na antiga União Soviética para que o cérebro do jogador assimile o puzzle como um exótico produto vindo de trás da Cortina de Ferro.

Levando tudo isso em consideração, retomamos, então, ao nosso dilema no sentido de que uma boa qualidade de animação é inerente à mídia anime e ao seu potencial de transmitir sua mensagem. Esse aspecto técnico faz parte do ato de contar a história de forma conjunta ao roteiro. É claro que muitas vezes é possível separar os elementos, destrinchá-los a fim de torná-los mais simples do que um sistema complexo, mas o ponto é que, num espectro amplo, a história do anime é o próprio anime em si.

É por isso que chega a ser um pouco frustrante quando obras de boa sinopse ou premissa acabam sendo prejudicadas pelo seu lado técnico, como Kiseijuu ou Evangelion. O critério “animação” vai ser muitas vezes separado da questão da história — retomando um pouco a suposta preferência da otacada no debate, que julga a animação como um aspecto menos essencial — porque é muito mais prático isolar o roteiro da narrativa visual, que exige um sentido completamente diferente para processá-la (aqui a gente poderia até entrar no conceito de McLuhan que descreve a dicotomia entre meios frios e quentes, mas já estou me estendendo e divagando demais).

Paradoxalmente, observe como é muito mais fácil se deixar levar com obras visualmente impressionantes e sem conteúdo para oferecer. Pegue Fate/Zero. Pegue Fate/Stay Night: Unlimited Blade Works. Pegue Kimetsu no Yaiba. Pegue Promare. Pegue Dead Leaves. Pegue qualquer trabalho do embuste do Makoto Shinkai. Todas essas são extremamente elogiadas, mas têm empecilhos na concepção de suas histórias, muitas vezes pretensiosas. Fate/Zero, por exemplo, é uma chatice em que nada ocorre por uns dezoito episódios (de vinte e quatro). Promare então, nem se fala — só checar meu review do dito cujo.

A ideia talvez seria alcançar um equilíbrio entre as características técnicas de animação e de roteiro. Combinar os dois num sentido de favorecer só o que uma animação tem a oferecer dentro da história já estabelecida. Essa simbiose de animação e a narrativa propriamente dita é bastante comum em obras de Masaaki Yuasa, como Night is Short: Walk On Girl. Uma das minhas sequências favoritas desse filme é quando um garoto — o Deus dos Livros — chama a atenção para como todas as obras de uma livraria estão interligadas por suas referências, sendo que o próprio aspecto óptico se dá ao trabalho de complementar esse pequeno discurso dele ao trazer uma ilustração visual com os livros se ligando. Isso, num live action, muitas vezes ficaria esquisito, mas funciona bem no formato animado porque a suspensão da realidade se dá de bem mais naturalmente.

Aliás, olha só! O diretor de Eizouken é justamente o Masaaki Yuasa! Oh! Quem imaginaria que essa informação apareceria em um momento textual tão estratégico? Retomando a questão toda, a sacada de Eizouken é fazer isso com um anime que, teoricamente, não está muito longe de um Slice of Life. Isso é muito interessante, de certa forma, pois, assim, pergunto: qual é o grande problema dos animes Slice of Life?

Resposta: a maioria deles mostram situações que podem ser reproduzidas em um dorama, uma novela, um seriado de TV qualquer em live action — e de menor orçamento, até. A graça do anime como mídia é o fato de que, por ser uma animação — feita ou à mão, ou digitalmente —, é possível criar situações completamente surreais e de uma maneira bem mais imersiva do que normalmente seria num live action.

O primeiro filme da história era um trem em direção à câmera. Reza a lenda que as pessoas não sabiam do que aquilo se tratava e começaram a fugir, achando que o trem ia para cima delas. Esse é o primeiro curta das garotas e causou o mesmo efeito imersivo no público. Bela sacada.

Repito, a suspensão da realidade proporcionada por uma animação é direta e ágil se comparada à um live action. É só ver o motivo de todos esses filmes da Disney, baseados nos desenhos animados da Renascença dos anos 90, estarem flopando: a reinserção dos musicais em um contexto com gente de verdade torna tudo muito inverossímil. É por isso que O Rei Leão é um desastre pré-anunciado. Não adianta se parecer um documentário do Animal Planet, de tão realista, se o simples fato dos animais abrindo a boca para conversar é algo digno do vale da estranheza.

A essa altura do campeonato, algo que fica no meio do caminho entre história e animação — ou o que talvez acabe ligando os dois em uma composição só — é a ambientação, cuja definição no sentido que quero utilizar está próxima dos conceitos de worldbuilding (construção de mundo), atmosfera ou, ainda, design de produção. Lembra-se lá no começo, de quando citei Bakuman?

Pois então, eu acho que ela, a maior obra de Takeshi Obata e Tsugumi Ohba — sim, estou alfinetando —, é uma puta de uma enganação. Pegando algumas ideias de um review que comecei a escrever (e provavelmente nunca vou terminar), de um modo geral, trata-se de uma romantização fraudulenta não só do processo editorial japonês, mas também de toda forma de relacionamento humano, principalmente da (não-)relação dos protagonistas, Mashiro Moritaka e Miho Azuki.

De fato, Eizouken é igualmente romantizado. Sabe qual é o problema? Novamente vem aqui a questão da ambientação. Desde o início, quando o próprio local é apresentado ao espectador durante a exploração de uma pequena Asakusa (cuja criatividade é aflorada ao descobrir a respeito desse mundo), é perceptível que aquela escola, bem como a cidade onde ela se situa, não se tratam de lugares comuns. Essa introdução é justamente para moldar a nossa primeira impressão.

Esse trecho é uma sinestesia que representa visualmente o processo de captação de um áudio. Lembra-nos também que os efeitos sonoros e as músicas também são história.

Tal tipo de sequência pode não ter diálogo, mas as maneiras como a animação, os quadros e todo o apelo visual são conduzidos, são feitas justamente para nos mostrar aquele mundo de um jeito sem parecer tão didático a um ponto cansativo ou explicado à exaustão de forma verbal. A cidade é uma espécie de personagem, assim como a escola em si. Dessa forma, Eizouken acabou seguindo um preceito muito importante do audiovisual: você não descreve, você expõe.

O fato de, logo de cara, sermos apresentados a um lugar tão surreal, fica mais fácil de digerir Eizouken como uma história que foge da realidade, enquanto Bakuman tenta com todas as forças possíveis se manter numa verossimilhança inconvincente, a julgar pelo paralelo constante a outras séries presentes do mundo real — algo que Eizouken não faz em momento algum.

Eizouken não é apenas um roteiro animado. É um conjunto de roteiro e animação que, juntos, contam uma história com o próprio apelo. Da mesma forma que as cores de uma pintura famosa de algum movimento artístico foram escolhidas a dedo pelo pintor — Capela Sistina, Mona Lisa, Persistência da Memória, Nascimento da Vênus, Abaporu, obras desse naipe — no intuito de transmitir alguma ideia, alguma mensagem, a animação muitas vezes tem esse papel e a gente se esquece disso.

O mérito de Eizouken, no fim das contas, é justamente nos fazer lembrar.

Entretanto, não vou ficar fazendo campanha defendendo o anime tão cegamente por causa do roteiro morno cujos problemas já citei — afinal, defendi o “estilo” porque ele próprio também faz parte da “substância”, mas não é a única parte de um conjunto — do mesmo modo que Promare. A diferença crassa é que a animação do Trigger, por sua vez, é uma injeção de adrenalina que tenta carregar um roteiro incrivelmente batido nas costas. Eizouken trabalha os dois aspectos em uma sinergia própria, principalmente por sua premissa metalinguística.


Informações

  • Autoria Original: Sumito Oowara
  • Episódios: 12
  • Ano: 2020
  • Direção: Masaaki Yuasa
  • Trilha Sonora: Eriko Kimura
  • Estúdio: Science SARU

P.S. 1: Nossa senhora, discorro esse monte de groselha sobre a discussão “Animação Vs. História” só para tentar provar que ela própria não tem ponto nenhum para existir. Eu me odeio. Ó o que a quarentena está fazendo comigo — pois, ao contrário de vocês, furões do caralho, eu estou fazendo a minha parte e respeitando essa porra.

P.S. 2: Não, eu não falei da abertura. Todo mundo já falou da abertura. 

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Um comentário sobre “Análise: Eizouken ni wa Te wo Dasu Na!

  1. Lightning Rose

    Eu honestamente nunca vi ninguém falando mal de Enzouken (me afastar do ambiente fedorente e tóxico me ajudou muito), ao contrário, vi gente comparando a One Piece em questão de traço e simplicidade (e não gosto de One Piece). Slice of Life foi um gênero que me encheu porque era das duas uma: harem no meio (com uma comédia as vezes) ou alguma coisa de manga shojo. Eu fico feliz em ver slice of life assim tomando espaço e ver espaço para experimentação. Pode não ser a melhor coisa do mundo e nem aquele anime que você assisti pra desligar teu cérebro, mas é algo diferente com muito potencial se trabalhado correto.

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