Análise: Fist of the North Star — Lost Paradise

Só para constar, eu comentei bastante sobre o jogo aí, nem me preocupei com a parada dos spoilers. Se for comentar, LEIA o texto primeiro antes de falar qualquer asneira que o texto já tenha respondido por si só.

Eu, de verdade, sou entusiasta de jogo de anime. Digo, existe um modelo meio que solidificado, de pegar algum gênero específico e simplesmente encaixar uma espécie de skin, capa, maquiagem em cima desse estilo existente, embora ainda que ultrassimplificado, uma vez que o atrativo não é a jogabilidade, mas o apelo visual e temático de jogarmos com nossos personagens favoritos — é a licença que vende. É por isso que a maioria desses games baseados em DESENHOS CHINESES™ são experiências até que divertidas, só que discutivelmente pobres em termos de gameplay.

É claro que, para cada FighterZ (skin safada de Guilty Gear) e One Piece Pirate Warriors (de Dynasty Warriors), a gente tem verdadeiras joias refinadas e polidas como o JoJo de Arcadão feito pela Capcom. Fist of the North Star: Lost Paradise — no Japão conhecido como Hokuto Ga Gotoku (em português Como uma Ursa Maior) — é um caso bastante curioso e fora da curva para a regra. No caso, trata-se de uma maquiagem temática do Hokutão em cima da engine da série Yakuza.

A questão é que, tradicionalmente, a IP da Sega se baseia em um estilo de jogo que envolve exploração em um de cenário mundo fechado — no caso em questão, o distrito fictício de Kamurocho. Assim, para que Lost Paradise tomasse forma, certas liberdades criativas foram necessárias. Afinal, não seria possível reproduzir a história do mangá, visto que Kenshiro, de certo ponto, é uma espécie de ermitão nômade. Tendo isso em vista, uma reimaginação completa foi feita e uma narrativa relativamente original foi concebida para o Herdeiro do Hokuto Shinken.

O game começa logo no clímax do primeiro arco do mangá, Southern Cross, no confronto direto de Kenshiro contra Shin, o homem que havia tirado o amor de sua vida, Yuria. Ao derrotá-lo, ele passa a vagar pelo deserto e ouve rumores de que sua noive está viva. Esses boatos o levam até a uma cidade murada chamada Eden, e é aí que o título começa a se desenvolver, de fato.

Eden é comandada por uma moça chamada XSana, que alcançou tal posto após assassinar o seu pai, Nadai, antigo líder do local. Kenshiro então descobre que Yuria realmente esteve na cidade e se isolou na Sphere City, uma construção gigantesca em forma de cúpula e remanescente da guerra nuclear que era responsável por gerar toda a energia daquele oásis em meio a tanta desolação. Tal local é constantemente atacado por Kyo-Oh, um Senhor da Guerra de tais terras ermas e, em uma dessas investidas, o capitão da guarda, Jagre, é deixado à beira da morte pelo estilo do vilão, o Meito Kieiken.

Sendo as suas habilidades sobre o Hokuto Shinken incapazes de curar o jovem — que muito se assemelha ao Okuyasu, na minha singela opinião — Kenshiro parte para Cassandra, a fortaleza murada de Ken-Oh, atrás de Toki, seu irmão adotivo mais velho e infinitamente mais versado em tal arte marcial. Dando tudo certo e retornando a Eden, Ken descobre que um homem chamado Rei está lá para desafiá-lo por ter, supostamente, perdido sua irmã, Airi, para o indivíduo com sete cicatrizes no peito. A questão é que, na verdade, Airi estava viva e “apenas” cega e nesse caso em específico, as habilidades do herói já eram suficientes para fazê-la recuperar a visão. Como se não bastasse, o protagonista não era o responsável por toda essa patifaria e ele e Rei logo se tornam melhores amigos.

Depois de toda essa palhaçada, XSana abre o jogo para Ken e explica que, se ele der a volta pelas montanhas por trás da cidade, ele chegará em um planalto de onde é possível ver a câmara onde sua amada repousa. Lá em cima ele descobre que Nadai, o ex-chefão do Eden, está vivo. Seu suposto assassinato pelas mãos de sua filha teria acontecido porque ele teria sido o assassino de sua mulher — e mãe da moça. Agora ele zela, de longe, o local que ajudou a construir.

Enquanto os dois papeavam naquele platô, é percebida uma movimentação ao longe. O exército imperial de Souther estava indo em direção a cidade, que logo é invadida e quase que completamente destruída pelo Senhor da Guerra — mas ela logo é reconstruída com a colaboração de todo mundo e é isso aí. Logo na sequência, boatos começam a correr sobre um homem com sete cicatrizes fazendo balbúrdia pela cidade. Jagi, outro dos irmãos de Hokuto e o verdadeiro responsável pelo sequestro de Airi, surge e logo é derrotado pelo protagonista. Sua aparição repentina, na verdade, faz parte de um estratagema de Targa, o braço direito de Kyo-Oh.

Enquanto Jagi é morto pelas mãos de Rei, que finalmente consegue cumprir sua jura de vingança, Targa é liberado para voltar a Kyo-Oh com uma mensagem de apavoro. Enquanto Kenshiro retornava de boas para o seu cafofo, um tremor de terra abala Eden. A justificativa de Xsana para tal fenômeno é que a Sphere City se tratava de uma base militar carregada de mísseis nucleares e muito provavelmente o marco zero do apocalipse que levou o mundo àquele estado de desolação. O fato de Eden se tornar uma cidade murada e exclusiva era simplesmente para proteger tal local de gente mal-intencionada que visaria trazer desgraça ao mundo novamente e a Câmara dos Milagres, onde Yuria repousa, é o abrigo supremo que traria segurança ao causador do armagedom como o último sobrevivente. Assim, os tremores sentidos mais cedo provinham da atividade nuclear sob o solo de Eden.

Outra revelação muito importante feita nessa mesma altura do campeonato é que XSana, na verdade, era uma serviçal sob as ordens de Ken-Oh — o nome de guerra de Raoh, o último dos irmãos de Hokuto que faltava aparecer —, como seu pai também havia sido, e que o fato de Yuria ter sido acolhida pela governante para dentro da Sphere City é que foi porque o Conquistados do Fim do Século havia mandado. Nisso, Eden é invadida pela octagésima terceira vez só naquela semana, agora pelo diabo de quem se falava.

A diferença, contudo, é que o Primeiro Filho de Hokuto dessa vez vinha em paz. Tudo o que ele queria era buscar Yuria. A questão é que parece que XSana tinha deixado de transmitir uma informação crucial naquela zona toda: a de que Nadai supostamente estava morto. Para piorar, ele era o único capaz de abrir Raoh então lamenta e explica que a situação toda era crítica, porque a Sphere City estava prestes a despertar, finalmente disparando os mísseis que colocam todo o planeta em risco. Isso se devia por conta do repouso de Yuria naquela câmara, que disparava um cronômetro até o fim iminente. Assim, era necessário removê-la com urgência para que o pior não acontecesse. Sem Nadai, a porta continuaria selada.

Isso faz com que Raoh, mesmo contra a própria vontade, tome a decisão de matar Yuria à distância. Kenshiro, contudo, jamais deixaria isso acontecer e finalmente rola a porradaria entre os dois, depois de toda a tensão sexual. O antagonista, por sua vez, recua após vislumbrar todo o amor que Kenshiro sentia por Yuria, jurando que um dia eles terminariam a batalha que haviam começado. Nisso, Kenshiro, ao ouvir sobre as técnicas de Nadai, assimila que ele e Kyo-Oh são, na verdade, a mesma pessoa. As sucessivas investidas do vilão contra a cidade, na verdade, era só uma forma de checar se tudo continuava nos conformes.

Logo em seguida, Ken descobre sobre o paradeiro de Kyo-Oh, quando finalmente decide invadir seu acampamento no deserto. Chegando lá, o boss armadurado que pensamos ser o chefão final é, na verdade Targa. Ele estava lá sobre o trono apenas para atrair Kenshiro e fazer Nadai ganhar tempo para abrir os portões de Sphere City e matar Yuria, salvando Eden e o mundo. O herói, no entanto, consegue retornar a tempo e tem seu duelo contra o mestre do Meito Kieiken e o Plot Twist final era que a verdadeira mente por trás de toda essa patifaria era Targa. Ele, Jagre, o capitão da guarda, e Lyra, a dona do clube noturno de Eden, se uniram no intuito de se vingar de Nadai por conta do incidente de anos atrás que culminou na nomeação de XSana como governante da cidade.

A questão é que Nadai chegou a ser visto vivo e escapando, o que fez com que os três ligassem um alerta para decidir procurá-lo. É por isso que eles conquistaram cargos importantes em três frentes diferentes, para conseguir captar quaisquer informações e boatos que possam aparecer. Tudo porque o pai de XSana tinha sido o responsável por assassinar os respectivos pais do trio no intuito de continuar mantendo o segredo sobre a real natureza da Sphere City a salvo.

Targa, entretanto, é o mais perdido em sua loucura e parte em disparada para o núcleo da base militar. Lá dentro, ele revela seu plano de causar um novo apocalipse naquele mundo e emergir de suas cinzas como um verdadeiro deus sobrevivente. O antagonista final  é inevitavelmente derrotado por Kenshiro, que descobriu que existia um mecanismo para selar a cidade e conter todas as explosões atômicas dentro da cúpula. Assim, ele desperta Yuria e os dois têm uma breve conversa antes de encararem, juntos, seus destinos finais. Créditos sobem.

Analisando de forma bruta, a história construída ao longo de Lost Paradise é incrivelmente interessante. Houve um belíssimo trabalho de adaptação aqui no sentido de convencer por si só, sem parecer uma fanfic barata, como geralmente acontece. A competência por trás de sua concepção é singular por ter conseguido trazer uma narrativa original de maneira a implementar com bastante maestria uma série de elementos-chave referentes à obra original e que diziam respeito à própria essência dos personagens.

Falando agora do que importa, da jogabilidade, algo que se destaca é que, assim com o mangá original é chupinhou horrores de Mad Max, o título aqui exclusivo do PlayStation 4 fez o mesmo com o desastroso e decepcionante jogo de homônimo. É claro que Eden se assemelha muito à Cidadela de Estrada da Fúria como uma cidade miraculosa no meio do deserto, mas a inclusão de uma espécie de mundo aberto, onde Kenshiro dirige uma espécie de jipe, se relaciona com a própria estrutura dorsal do game correspondente.

E olha, ainda bem que o Lost Paradise não se abraçou completamente essa ideia, pois dirigir pelas Terras Desoladas é extremamente incômodo porque a jogabilidade do carro é horrorosa. Por mais que o jogo não se baseie nessa mecânica — o que teoricamente o eximiria da culpa— é impossível relevá-la pela quantidade de tempo que a gente perde percorrendo o deserto à quatro rodas. Como se não bastasse, o quicktravel não é tão quick assim e vira e mexe somos incomodados por bandoleiros de baixíssimo nível que não servem para porra nenhuma. Encontrar os tesouros perdidos por lá e desbloquear as corridas também são atividades extras consideravelmente desinteressantes.

Atividades extras, por sua vez, são um dos principais atrativos diferenciais dos Yakuza e aqui não é lá muito diferente. Enquanto as que estão espalhadas pelas Wastelands são tediosas para caralho, as de Eden já são mais atrativas. Uma delas, a do Bartender Kenshiro, nos coloca em vários minigames que nos remetem os jogos clássicos do Wii e que fazem uso do Wii Remote por exigir os controles de movimento do DualShock ao batermos manualmente as bebidas que produzimos. Outro que chama atenção é o Manager Ken, em que precisamos gerenciar o clube noturno e lidar com clientes incômodos de um jeito não-amigável.

Também há o Fliperama de Eden, em que um senhor monta um Arcade em que a gente pode jogar clássicos reais da Sega; o sisteminha de caçador de recompensas, em que vamos atrás de criminosos cuja cabeça foi posta à prêmio; o Coliseu, onde participamos de desafios contra personagens poderosos que, na verdade, são os clones dos chefões; e o Cassino, onde temos acesso a vários minigames normais de tais locações.

Outra atividade paralela a se fazer são as missões de sidequests. São várias, muitas delas bastante memoráveis, em que conhecemos várias histórias envolvendo os habitantes de Eden. Isso ajuda a trazer personalidade para o jogo, fazendo com que nos apeguemos pelos personagens. Destaque para o Kenshiro fazendo hambúrguer e amaciando a carne com o Hokuto Shinken, aliás.

A principal proteína de Fist of the North Star: Lost Paradise, contudo, é o Sistema de batalha. Ocasionalmente, enquanto estamos caminhando por Eden, somos emboscados por um grupo de inimigos. No começo ele começa meio truncado, mas à medida que vamos desbloqueando novas habilidades, o combate vai ficando progressivamente fluido, direto e ágil, nos tomando menos tempo. Uma das mecânicas mais interessantes nesse aspecto é o botão bolinha, utilizado para ativar os pontos de pressão dos inimigos. Ao deixá-los atordoado, podemos ativar seus pontos de pressão, explodindo-os de dentro para fora, além de colocar em prática uma gama considerável de técnicas de finalização e contra-ataques, reproduzidas na tela sempre com animações diversas.

Por fim, é possível atingir uma espécie de modo Awakened, em que as sete estrelas de Hokuto brilham sobre Kenshiro. Com a barrinha da constelação cheia, podemos ativar a modalidade, que aumenta nossa força consideravelmente, facilita a utilização dos pontos de pressão e permite que o Kenshiro salte sem restrições. De um modo geral, o que faltou é a chance de utilizarmos elementos do cenário durante as lutas. Até dá para quebrar a quarta barreira e utilizar como armas as onomatopeias dos gritos que os inimigos soltam quando morrem, mas ainda não é a mesma coisa.

A despeito de alguns problemas — aliás, tirando o enredo, eu só falei mal do jogo, se prestar atenção — Lost Paradise é incrível. Verdadeiramente incrível. A narrativa é empolgante, o combate é imersivo e os minigames trazem variedade e diversidade. Tudo parece dentro de seu próprio lugar, apesar de alguns delírios (vide Kenshiro assando hambúrguer com um lança-chamas) que conseguem se mesclar à tradicionalidade da obra original da qual se baseia. O título é rico em gameplay o suficiente para conseguir envolver até mesmo aqueles que não são fãs da obra original e que estão atrás de uma experiência verdadeira que ultrapasse a barreira do fanservice derivativo de uma forma antes vista apenas em, sei lá, Heritage for the Future?

Vale lembrar que essa abordagem alternativa de Fist of the North Star: Lost Paradise nos remete ao chamado Unicórnio de Origami, um termo generalista cunhado por Neil Young que se refere a um texto cujas alterações sofridas nos fazem criar uma “reconsideração de outras obras de uma mesma franquia”[1]. Está bem que, ao contrário de Blade Runner, onde é um elemento minúsculo que desencadeou um entendimento completamente diferenciado, aqui trata-se de uma reimaginação quase que completa de uma obra consagrada. Mais do que isso, ele não cria novas interpretações da obra, mas reforça um truísmo que a gente sempre se esquece porque os Memes falam mais alto: Hokuto no Ken, é sobretudo, uma história de amor.


Informações

  • Produção: Sega
  • Estúdio: Ryu Ga Gotoku Studio
  • Ano: 2018
  • Gênero: Aventura, Ação
  • Plataforma: PlayStation 4

Nota: Uma última observação: eu acho que o epílogo pós-créditos desse jogo é provavelmente um dos mais bem-feitos já vistos, uma vez que o final original é extremamente satisfatório por si só e o epílogo complementa (ou não, alternativamente) a conclusão da história, tal como o Unicórnio de Origami. No caso, trata-se do Nadai aparecendo de última hora para salvar o Kenshiro e a Yuria, prendendo os dois na câmara de proteção enquanto ele explode junto com as bombas dentro da Sphere City. Há um certo detalhe envolvendo maçãs, mas chega de spoiler por hoje (não que eu ligue).

[1] JENKINS, Henry. Cultura de Convergência. São Paulo: Aleph, 2009

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