Com a consolidação da globalização, o cinema passou a ter duas ramificações. Uma delas é a comercial, feita para aglomerar o maior número de fãs possíveis de formas relativamente fáceis. Os filmes da série Harry Potter são assim. A outra é a idealização do cinema como forma de arte, na qual Laranja Mecânica (“A Clockwork Orange”, no original) se encaixa.
E dou graças à Deus pelo fato de Laranja Mecânica não ser algo comercial, senão os fãs iriam reclamar por não seguir à risca o livro de origem. Isto é, olha só como são os fãs dos filmes de Harry Potter, são uns caras que muito provavelmente, em casa, fazem um buraco no pôster para realizar um “entra-sai” 1 com ele.
Bom, não é esse o foco dessa análise. Laranja mecânica é um “Director’s Cut” da obra em questão, do mesmo modo que se encaixam as versões no cinema de Speed Racer, de Dragon Ball (Evolution) e várias outras obras. Não é para seguir uma obra à risca, é para mostrar a visão do idealizador do filme em questão.
A ambientação é dada num futuro distópico próximo, onde a até então União Soviética teria uma influência tão grande quanto à dos EUA no processo de globalização. Isso significaria palavras russas no cotidiano, igual às inglesas existem nos dias de hoje. Mais ainda, palavras russas e inglesas iriam sincretizar-se, gerando um neologismo único – no livro, identificada como Nadsat.
Nosso protagonista é Alex Delarge, um carismático anti-herói que mora num complexo habitacional, mais uma clara referência ao socialismo. Ele e seus Droogs (nadsat para “amigo”, vindo do russo, mas com grafia inglesa) simplesmente vivem para “tocar o terror” pela região, seja estuprando ou espancando qualquer um que encontram pela frente. Em suma, praticando a boa e velha ultraviolência, como preferem chamar. Também gostam de leite e são adeptos do dandismo, de uma forma ou de outra.
Alex intitula-se o líder e fica extremamente incomodado quando seus companheiros começam a tentar expor a próprias ideias. Para erradicar esse incômodo, Alex acaba dando uma lição deles – no sentido violento da palavra – e eles se vingam. Ao realizar um assassinato (que não é explícito se foi ou não intencional), Alex é deixado no local do crime pelos seus companheiros – após levar, dos mesmos, uma garrafada na cabeça – e então é preso.
É condenado a quatorze anos de encarceramento, mas só cumpre dois. Na cadeia exerce um comportamento até que exemplar, apesar dos flertes dos outros detentos e dos abusos dos guardas. Ele consegue sair quando, manipulando o Ministro de Interior, ingressa num tratamento experimental para recondicionamento de prisioneiros.
Agora é o melhor momento para definir nosso personagem. Alex é um desajustado. Um alguém anti-instituicional e até certo ponto, anárquico e inconstitucional. Acontece que, ao mesmo tempo, ele é um indivíduo extremamente culto. Amante da boa música, espanca suas vítimas enquanto entoa Singin’ in the Rain e possui como composição favorita a Nona Sinfonia de Beethoven. Além disso, é conhecedor da bíblia (mais gostava da crucificação, quando ele mesmo se enxergava como o centurião que chibatava Cristo) e admirador da moda.
Retomando deste parágrafo anacoluto ao texto, Alex é submetido a um tratamento baseado no trauma. Combinando os efeitos de uma droga com as imagens violentas que são fixadas em seu cérebro, o tratamento Ludovico o incita a passar por enjoos e ânsias perante qualquer pensamento hostil ou indócil. Um efeito colateral – e infeliz, diga-se de passagem – é que ele torna-se avesso à sua tão amada Nona Sinfonia, a qual foi usada como música de fundo em uma das películas utilizadas na terapia. Apesar de tudo, ele acabou conseguindo voltar para casa.
Em seu retorno, encontra tudo de cabeça para baixo. Seus pais alugaram seu quarto a um completo estranho que tomou seu lugar como filho e desfizeram-se de seus pertences, um mendigo que tinha sido por ele espancado o reconheceu e quis dar o troco e os dois antigos droogs que quiseram expor seus pensamentos no começo do filme tinham se tornado policiais. Após muito apanhar deles, Alex vaga até a casa de um escritor que ele havia espancado anteriormente. O escritor não o reconhece de primeiro relance porque Alex e sua gangue estavam de máscara no momento de seu massacre.
Alex então é socorrido e ganha a oportunidade de tomar um banho. O escritor reconhecera-o através dos jornais, como um pobre prisioneiro que havia sido escolhido como cobaia de algum experimento maléfico do governo. Ele só veio a ligar os fatos quando Alex começa a cantar Singin’In the Rain na banheira e mais uma vez, nosso protagonista é alvo de mais uma vingança. Após ter conhecimento da involuntária aversão da Nona Sinfonia por parte do nosso narrador – sim, o filme é narrado pelo próprio Alex – o escritor o coloca num quarto onde a música clássica é tocada. Alex então se joga da janela numa tentativa de suicídio.
Tentativa ao menos, porque o anti-herói sobrevive e percebemos durante o teste psicológico que ele havia voltado ao normal. Podia pensar de novo em sua tão amada ultraviolência. Podia falar palavrões e ter desejos sexuais novamente. É quando aparece o Ministro do Interior novamente pedindo o apoio político de Alex. Afinal, o escritor tinha matado dois coelhos com apenas uma cajadada: Provar que aquele tratamento era desumano por ter levado Alex ao suicídio e ter causado sequelas gravíssimas ao mesmo, como forma de vingança. O governo encontrava-se rechaçado pela opinião popular e precisava causar boa impressão agora.
Em troca do apoio, o governo oferecia um bom emprego com salário idem. Agora o Estado, aquele que sempre o condenava, estava agindo sob seus interesses. O filme se encerra com a impactante cena ideológica de Alex fazendo sexo com uma mulher nas nuvens e aristocratas assistindo-o, ao som da Nona Sinfonia de Beethoven.
Esse final nos mostra um pacto realizado entre o Estado e Alex, no qual a instituição se mostra submissa. Para nós falantes da língua portuguesa, a cena mostra-se paradoxal. Nós possuímos a expressão “Comendo na palma de minha mão”, mas Alex de forma contraditória a ela, simplesmente abre a boca ao Ministro do Interior, que corta a comida em pedaços e os coloca na boca em sua boca, já que não podia se mexer graças às imobilizações em seu corpo todo quebrado. Não são eles que comem na palma da mão de Alex. Ele simplesmente os obriga a alimentá-lo.
A obra quebra qualquer conceito de tratamento psicológico como uma forma de resolução de problemas. Ele não é contra a psicologia num sentido de estudo da mente humana – afinal, o próprio filme faz isso o tempo todo – mas sim no sentido de que algum tratamento possa ajudar. É o próprio ser que deve passar por uma epifania metanoica. Cai também o conceito de bom-selvagem de Rousseau. O próprio diretor, Stanley Kubrick, já comentou que o filme visa provar que a maldade já está entranhada no ser humano.
Essas obras são geralmente de múltipla interpretação. Alex então é um protagonista que pode ser visto de várias formas. A mais comum é a imagem um desajustado que fora corrompido pela sociedade em que vive. Eu analiso diferente. A julgar pelo gosto refinado de Alex para a música e moda, o protagonista pode ser visto como alguém que não fora influenciado pela sociedade. Enquanto o padrão requer que todos sejam comportados e alienados (não gosto da palavra, mas é a que melhor se encaixa no contexto), Alex surge com um pensamento próprio, fora do comportamento mundano e fazendo o que bem entende. O social não cultua a cultura. Alex a cultua. Alex, inclusive, pode ser um trocadilho que mistrua grego e latim (respetivamente) para A-Lex, ou seja, sem lei, embora esse nome possa ter sido mera coincidência.
Será Alex então uma Laranja Mecânica?2 O neologismo Nadsat implica que Laranja significaria homem, então uma Laranja Mecânica é o ser humano programado, condicionado, repetitivo, por fim. Alex foi programado para que não aja com violência. Atribui-se a qualidade da máquina a um ser orgânico. Esta programação torna-se clara quando Alex, no hospital, conta à psicóloga sobre seus sonhos, onde neles havia outros operando o seu cérebro diretamente. Junto com essa programação, vai-se também seu amor por boa música, o que comprova a interpretação que essa característica da apreciação da arte é tida por indivíduos não-alienados, pois Alex agora estava inserido em seu mundo, não precisava apreciar mais a boa arte.
Laranja Mecânica é um título paradoxal no sentido inversamente proporcional ao de “Computer Blue”. Como pode a Laranja, um ser humano, ter características inorgânicas como a mecanização?
A ambientação do filme é fantástica. O clima escuro e frio que remete ao socialismo está sempre presente, principalmente nas arquiteturas, como complexos habitacionais onde os cidadãos são praticamente encaixotados, igual ao lado oriental da Alemanha, por exemplo. O Bar de Leite Korova também possuía decoração singular: representações do feminino nu em todo o local. De seios, saía o leite – com drogas nele diluídas – que bebem os frequentadores do local. A mulher-gato que é assassinada por Alex também possuía certo gosto bizarro para arte, pois em sua casa era ostentada de diversas formas pela representação do falo. A maquiagem que Alex usava ao redor do olho era sutil, porém impactante.
Assim como várias outras peças-chave da literatura, exemplificadas por O Conde de Monte Cristo e Dom Casmurro, até hoje se especula sobre os vários possíveis significados dessa obra. É possível ficar dias escrevendo sobre seu teor crítico, reflexivo e simbólico.
A trilha sonora também merecia uma análise à parte (que não vai ocorrer, contudo). Desde o tema principal às clássicas de Beethoven e Elgar, passa-se a ser impossível escutar novamente Singin’ In the Rain e a Nona Sinfonia sem a assimilação às cenas do espancamento do escritor e à do sexo nas nuvens, respectivamente. Laranja Mecânica não é apenas um filme com um bom roteiro, uma boa trilha sonora e um bom screenplay, apenas. É um filme em que essas três características conseguiram se assentar de forma única. Laranja Mecânica é um conjunto perfeito.
A Laranja Mecânica é um clássico. É um dos poucos filmes que conseguem ser aclamados como melhor do que seu livro de origem. Alex inspiraria ainda outros anti-heróis e vilões como Zolf J Kimblee e Kira Yoshikage. Laranja Mecânica é o que todos precisam: Um filme Inteligente com cenas impactantes e personagens marcantes. Agora você sabe a origem do apelido dado à seleção neerlandesa de futebol. 3
Informações
- Autoria Original: Anthony Burgess
- Duração:137 Min.
- Ano:1971
- Direção:Stanley Kubrick
- Roteiro:Stanley Kubrick
- Trilha Sonora:Walter Carlos
- País: Inglaterra
- Gênero: Ficção Científica
- Estrelando: Malcolm McDowell, Godfrey Quigley, Anthony Sharp, Patrick Magee, Warren Clarke
Notas:
[1] Entra-e-sai é como Alex se referia à relação sexual.
[2] “Serei eu apenas uma laranja mecânica?” é uma frase do próprio livro, quando Alex começa se questionar sobre suas ações, ocorre no momento em que ele lê um pedaço do livro do escritor que espancara (e que se vingaria dele mais tarde). Tal livro, propositalmente se chama “Laranja Mecânica”.
[3] O apelido foi dado graças às rápidas jogadas ensaiadas da equipe, somado ao fato de que o uniforme principal da mesma era laranja.