Análise: The Age of Pleasure – Janelle Monáe

Eu tinha desistido de escrever sobre música aqui no Horny Pony há alguns anos, sendo que o último álbum que me estimulou a tal tinha sido The ArchAndroid, aquele que certamente é um dos meus álbuns favoritos de toda a minha vida. Trata-se de uma gravação de um brilhantismo sem igual, com melodias engajantes e músicas plenamente marcantes no sentido de você ouvir cada uma delas e saber distingui-las, mesmo todas pertencendo ao mesmo conjunto temático, a parada do afrofuturismo robótico fortemente inspirado por Metropolis.

Depois dessa verdadeira obra-prima, Monáe lançou uma sequência realmente muito boa para a história de Cindi Mayweather chamada The Electric Lady, que contou com hinos maravilhosos como Q.U.E.E.N (com participação da Erykah Badu), Ghetto Woman, We Were Rock & Roll, Dance Apocalyptic, Givin’ Em What They Love e a faixa-título. Todas elas facilmente identificáveis e suficientemente distintas, carregadas de identidade própria.

Desde The Electric Lady, entretanto, é seguro afirmar que as coisas mudaram um pouco para a artista. Sendo muito sincero, o sinal de alerta já estava lá com aquela composição processada que foi Yoga, mas era só um single, né? Afinal, ela já tinha participado de outras músicas desse jeito mesmo entre o ArchAndroid e The Electric Lady — vide We Are Young.

Nesse meio tempo, Monáe se arriscou na atuação como a artista versátil que é. Nem todo mundo é um Bowie, que consegue ser igualmente exímio tanto na indústria musical quanto cinematográfica, mas dá para dizer que ela não chegou nem perto dos dramáticos desastres que foram as incursões de Prince, Madonna e Lady Gaga nessa área.

Pois é, em 2018 veio Dirty Computer. Logo de cara, eu já fiquei meio na bad. Tipo, como uma artista que faz aquela obra-prima atemporal que é The ArchAndroid me faz aquela tralha? Dirty Computer tem literalmente só duas ou três trilhas boas em quatorze (Make me Feel, e Americans, quiçá Crazy Classic Life). O álbum é composto por um som enlatadíssimo e a impressão que me ficou desde então é que, ao lado dessas incursões cinematográficas, Monáe estava trabalhando para tentar finalmente chegar ao mainstream. E isso é compreensível, embora não concordável.

Agora, em 2023, chegamos ao que me engatilhou de verdade para estarmos aqui novamente escrevendo, um review sobre um álbum musical. E eu queria entender, mais uma vez, como é que uma artista que faz aquela obra-prima atemporal que é The ArchAndroid me faz esse protótipo bizarro que ela chama de novo álbum?

The Age of Pleasure é simplesmente bizarro, cara. É incompreensível. Em Dirty Computer, eu já tinha aceitado que o que ela tinha produzido na trilogia Metrópolis nunca mais voltaria, e está tudo bem deixar Cindi Mayweather para trás. Não é problema algum em abandonar a ficção científica. Afinal, Bowie fez questão de seguir em frente e matar Ziggy Stardust em prol de outras experimentações temáticas. Essa virada de cento e oitenta graus, inclusive, culminou diretamente em Young Americans, que é um dos álbuns mais brilhantes do cara.

Não há problema algum em ela querer explorar a própria imagem para além do terninho sóbrio que costumava usar. Também não há problema ela fazer um álbum inteiro conceitualizado na sexualidade — o Prince tem música suficiente para preencher uns três sobre esse tema. Ela pode fazer o que quiser nesse aspecto, é o que a faz uma artista de verdade, no fim das contas. A principal lamentação é o quão pobre ela permitiu que sua música se tornasse ao adotar essa pegada. É inacreditável que a compositora tão inventiva, responsável por maravilhas como Sincerely Jane e Cold War, tenha se resumido a um disco inteiro embalado por uma única melodia de Reggae.

Monotonal é a palavra. Há alguns momentos pontuais em que The Age of Pleasure esboça algumas melodias diferenciadas, especialmente nas situações em que elas remetem aos trabalhos mais antigos (i.e. Metropolis) — como em Black Sugar Beach, que na verdade não é nada mais do que uma transição entre Champagne Shit e Phenomenal e que remonta a mesma função de Neon Gumbo em Archandroid. E o problema não está no Reggae, mas como ele não conta com inspiração alguma em sua forma.

Inclusive, há um contraste bastante evidente quando comparamos Q.U.E.E.N, que apresenta uma lírica poderosa com versos como “Categorize me, I defy every label” ou mesmo “Even if it makes others uncomfortable/I will love who I am”, com a faixa de abertura. Float faz uso abusivo do “versace flow” (que, em uma explicação preguiçosa, é como se ela dividisse um beat em três notas em vez de duas ou quatro, criando uma estrutura em que as palavras e/ou sílabas poéticas são tonificadas dentro desse compasso) e recai em um refrão repetitivo.

Isso se repete praticamente em todo álbum, passando por Phenomenal, Haute, Lipstick Lover e vai. A métrica se mantém a mesma, com batidas muitas vezes insossas (embora a de “Haute se destaque) e, basicamente, é isso. Não é à toa que o álbum tem apenas meia hora de duração. Se fosse mais longo, certamente pesaria negativamente devido à pura redundância, usando ainda mais tempo para se repetir em ad infinitum.

Champagne Shit não foge das críticas anteriores, e ainda acrescenta o fato de exibir uma letra que realmente incomoda, pois representa uma virada muito brusca de valores. Alguém que sempre trouxe uma mensagem de libertação contra o sistema opressor agora canta sobre a celebração da riqueza, descartando a consciência de classe no momento em que, teoricamente, a pobreza alcança sua ascensão social. Se ao menos a música tivesse uma melodia empolgante, poderíamos relevar essa abordagem, mas infelizmente não é o caso. Fácil uma das piores do álbum e uma cusparada em todo o próprio legado.

(Se bem que não há legado a ser protegido, vide que o conceito de “morte do autor” existe exatamente para justificar esse tipo de situação, uma vez que a obra tem sua luz própria independentemente de quem a fez. A obra existe como um mosaico de referências e citações criativas anteriores e, sem ela, a condição de autor simplesmente inexiste).

Acho que, além de Black Sugar Beach, minha faixa favorita de The Age of Pleasure é The Rush, principalmente porque é uma das poucas que tenta fazer algo diferente — quando digo “diferente”, quero dizer que se destaca em relação ao resto do conjunto, não necessariamente por ser um esforço sincero de experimentação. Um dos maiores exemplos dessas escassas tentativas ocorre nos lapsos em que Monáe decide usar um trompete para adicionar tempero à constante melodia de reggae que serve como base para todo o álbum. Isso fica evidente em faixas como Know Better, Black Sugar Beach (mais uma vez) e Haute (como já constatado).

Falando nesses aspectos, a reta final do álbum traz alguns destaques individuais, mas eles não conseguem se desenvolver completamente devido à proposta de fast food que The Age of Pleasure acaba trazendo, uma vez que nenhuma música realmente se preocupa em crescer progressivamente em sua duração. Assim, as baladas de encerramento, Only Have Eyes 42 e A Dry Red, representam duas esperanças de que um dia ela talvez volte a criar músicas com coração e inspiração.

De um modo geral, é decepcionante ouvir um álbum com tão pouco esforço aparente na composição das letras e da melodia, especialmente quando conhecemos o trabalho pregresso de Janelle Monáe. Em várias ocasiões, parece haver uma tentativa quase desesperada de emular um estilo próximo ao de Beyoncé (mais especificamente Lemonade e Renassaince) ou mesmo de Rihanna — quando ela se aventura pelo reggae latino com uma propriedade e inventividade muito maior, como em Man Down, No Love Allowed, If It’s Lovin’ That You Want ou Rude Boy —, em vez de evoluir a impressão que a tornou tão única.

Também é de uma ironia poética absurda notar que o seu álbum mais humano, que é o tematicamente mais distante de toda a questão da ficção científica, do simbolismo do afrofuturismo e da questão do androide, seja justamente o que soe mais industrial e mecânico até agora, carecendo da alma que uma figura como Cindi Mayweather possui em abundância.

Se a comparação com o brilhantismo de Prince em relação à Janelle do passado era justa, The Age of Pleasure também consolida (negativamente) essa proposta, equiparando-se claramente a um álbum qualquer da era d’O Artista Anteriormente Conhecido Como Prince, quando ele, de seis em seis meses, sentava, compunha no automático um álbum completamente insosso no que diz respeito à sua capacidade e o mandava para a Warner Bros. no intuito apenas de cumprir o contrato e se livrar das amarras da gravadora.

Um comentário sobre “Análise: The Age of Pleasure – Janelle Monáe

  1. phrsantos

    Procurando fontes pra escrever roteiro, eu te encontro aqui firme e forte!

    Que bom ver o horny pony ainda ativo, Creisson! Lembrei de você com tiger e bunny, [c] e outros nessa semana. Deve ser por isso hahaha

    Um abraço de 10 anos atrás!

    Mikaelocker

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